Quando a primeira rachadura surgiu, ela deixou pra consertar depois, havia coisas mais urgentes para se importar. Ela poderia achar tempo, se deveras quisesse, mas julgou que sua cabeça já estava muito ocupada com "coisas da vida" -- trabalho, homens, salão de beleza, homens, trabalho etc.
Passaram alguns dias e surgiu outra rachadura, essa ao lado de seu espelho, era inevitável encara-la. Pensou em algumas soluções. Um pedreiro certamente a enrolaria e lhe traria mais problemas que os que já tinha. Poderia tentar consertar ela mesma, mas era um trabalho braçal desnecessário ela 'não se via assim'. Resolveu pinta-las, enfim. Se ela ao menos tivesse alguém que o fizesse por ela... Resolveu pintá-las, enfim. Era coisa provisória, ela resolveria o problema mais tarde. Por enquanto ninguém as veria -- nem mais ela -- e ela lhe daria tempo de ajustar e arranjar tempo para tratar do problema mais a fundo.
Sua vida não se ajustou, assim, tão prontamente. Aliás, nunca fora ela ajustada. Dos vinte e um anos de existência dela, julgava apenas o período da infância "ajustado", "não confuso", de modo que não arranjou tempo para as rachaduras.
Ela não poderia dizer que a casa não lhe avisara -- embora o tenha dito posteriormente. Ouvia estalos à noite, "deve ser o armário" -- cogitava as rachaduras, mas só lhe traria mais problemas que os que já tinha à mente.
Se feliz ou triste é o fim de sua história, não sei. O caso é que, naquele dia, sua vida finalmente entrara nos eixos. Depois de algumas idas e vindas seu namorado lhe pedira em casamento, ganhou um emprego fixo onde estagiava e sentia-se até mais bonita. Naquele dia sua casa ruiu. Ela passou algumas horas sentada no banco da praça observando os destroços de sua negligência, antes que os bombeiros a tirasse dali.
A vizinhança comentava que aquela casa já estava para cair há anos, que foi estupidez a menina ter se mudado para lá. Outros diziam que, talvez, se a casa tivesse passado por algumas reformas, provavelmente ainda estaria de pé. Mas ainda há aqueles que não buscam um culpado na história. A casa iria cair, era sua sina. O que se comenta entre murmurinhos e sussurros é que a casa esperou que ela estivesse pronta para, enfim, ir ao chão, e ainda existem muitas outras casas antigas na vizinhança...
Um comentário:
nossas rachaduras que insistimos em ignorar, mas nem sempre tem um final tão bom quanto. As vezes elas simplesmente não somem, e tendem a aumentar. São assustadoras.
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